Em entrevista exclusiva para a MundoLogística, o presidente da associação, Luis Baldez, comentou os marcos dessa história e os principais desafios a serem enfrentados nos próximos anos
A fundação da Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga (ANUT), na virada de 2002 para 2003, teve como pano de fundo o momento de grandes transformações no setor logístico brasileiro. Segundo a entidade, esse período foi marcado pela demanda por uma representatividade sólida para diversas indústrias, especialmente após a privatização das ferrovias. Nesse sentido, a ANUT nasceu com um foco: atuar como uma ponte entre os usuários e os desafios regulatórios e operacionais que emergiam em um mercado em expansão.
Ao longo de duas décadas, a ANUT ampliou essa atuação, agregando setores como energia, agronegócio e cimento à base de associados. Hoje, a entidade é integrada por mais de 30 empresas, incluindo algumas gigantes como Gerdau, Braskem, Raízen, JBS, ArcelorMittal e Saint-Gobain.
Em um país com uma logística historicamente rodoviária, a associação não apenas promoveu debates sobre a multimodalidade, mas também apresentou soluções para problemas estruturais. Uma dessas atuações marcantes foi durante a greve dos caminhoneiros, em 2018. “A ANUT teve uma atuação propositiva importante, preparando documentos que definiram conceitos e estratégias, que se tornaram referência. […] Uma das medidas que resultaram dessa ação foi a Lei do Preço Mínimo do Frete”, explicou o presidente da associação, Luis Baldez.
Em entrevista exclusiva para a MundoLogística, ele comentou os marcos da história da associação, os principais desafios a serem enfrentados nos próximos anos e como a ANUT, tal como fez nos últimos vinte anos, pretende atuar nessa construção de uma logística mais eficiente.
Leia na íntegra!
MUNDOLOGÍSTICA: Primeiramente, como foi a fundação da ANUT, em termos de principais motivações e desafios que levaram à criação da associação?
LUIS BALDEZ: No início dos anos 2000, existia uma entidade que representava o setor siderúrgico brasileiro. Essa entidade trabalhava com vários fatores, incluindo rodovias e ferrovias, buscando resolver as demandas da época. Naquele período, não existiam agências reguladoras, e a entidade tratava diretamente com os ministérios, focando em questões de frete, investimentos e regulação para o setor siderúrgico. Com o tempo, verificou-se que empresas de outros setores também buscavam essa entidade para resolver seus problemas. Assim, decidiram criar uma associação voltada exclusivamente para a logística, abrangendo diversos setores além da siderurgia. Isso ocorreu especialmente após a privatização das ferrovias, que começou em 1997. Cinco anos depois, as concessionárias estavam investindo e remodelando as ferrovias, o que levou à criação da ANUT em dezembro de 2002, com início dos trabalhos em 2003. Este ano, a ANUT completa 21 anos de existência, com o objetivo de tratar da logística para todos os setores. Ao longo do tempo, outros setores foram agregados, como energia, agronegócio, cimento e combustíveis.
Hoje, temos uma discussão bastante intensa sobre a predominância do modal rodoviário no Brasil e os impactos que isso gera em termos de produtividade, custos, entre outros aspectos. Essa questão já existia quando a ANUT foi criada, ou foi um problema identificado à medida que o mercado foi evoluindo?
Nos anos 2000, o Brasil já tinha uma forte tradição rodoviária. Historicamente, o país dedicou-se muito às rodovias. Desde os anos 50, com o governo JK, existia a frase de que a integração do país seria feita por rodovias. As rodovias têm a vantagem de serem mais rápidas de construir e flexíveis, permitindo conectar duas cidades rapidamente. Coloca-se um caminhão na estrada e a logística está feita. Além disso, é uma tecnologia já dominada pelo país. Quando se diz que o Brasil é “rodoviarista”, há um tom pejorativo, pois isso implica ter escolhido a modalidade de transporte mais cara. No entanto, essa escolha se deve à flexibilidade. A ferrovia, embora seja um importante modo de transporte, tem dificuldades operacionais. O mercado opta pelo transporte rodoviário por ser mais fácil, mesmo sendo mais caro. Nos anos 2000, o foco era totalmente nas rodovias, pois a Rede Ferroviária Federal estava desmantelada e sucateada, sem investimentos. Naquela época, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, houve a privatização das ferrovias. O Estado percebeu que não podia fazer tudo sozinho e precisou trazer a iniciativa privada. A rede ferroviária foi privatizada para resolver essa situação. A iniciativa privada desenvolveu seu papel, mas o sistema ferroviário continua menor em comparação ao rodoviário. Desde aquela época, a situação já era essa.
Como presidente da ANUT, você vê projetos viáveis para o desenvolvimento de outros modais no Brasil? A associação está atenta a essas movimentações, e é algo que podemos realmente considerar como uma possibilidade no futuro?
Acho que houve um erro estratégico no país no passado. Quando o Governo Federal iniciou a privatização das ferrovias, acreditou que não teria mais nada a ver com o setor, como se dissesse “privatizei, concedi o setor e agora o setor privado resolve”. Porém, o sistema ferroviário, em qualquer lugar do mundo, precisa de grande envolvimento do governo para resolver problemas, incluindo novos investimentos. O que o governo fez? “Eu concedi, agora vocês resolvem”. O que o setor privado fez? Começou a abandonar linhas inviáveis, sem carga para transportar, e, ao longo do tempo, restou apenas um terço das linhas concedidas em 1997. Quase 30 anos depois, os dois terços restantes estão abandonados ou com pouca operação. Esse foi o primeiro movimento. O segundo foi a concentração do sistema ferroviário no transporte de minério de ferro. Hoje, quase 80% da carga do sistema ferroviário é minério de ferro. O terceiro movimento foi a consolidação das linhas em torno de dois grupos econômicos: a Vale e a Rumo. Para essas empresas, a logística do minério de ferro, do açúcar e do agronegócio funciona bem, mas a carga geral, que é a que interessa a outros setores, está nas rodovias. E, como sempre digo aos nossos associados, ainda bem que temos rodovias, porque, sem elas, estaríamos num colapso logístico. O processo acabou definindo o que é bom e o que não é. O erro, no entanto, foi que o governo esqueceu a ferrovia. Esqueceu no sentido do planejamento, de tentar viabilizar mais recursos e de recuperar trechos que podem ser recuperados. Hoje, estamos em um grande dilema sobre o que fazer com o setor ferroviário. Temos uma boa lei, mas falta ação do Estado para recuperar a malha e fazer novos investimentos. Para se ter uma ideia, 92% das empresas que contratam frete ferroviário enfrentam dificuldades na contratação. Primeiro, não há oferta de capacidade. A ferrovia está lotada, não tem mais por onde passar. Segundo, quando se contrata o frete ferroviário, também se contrata a parte rodoviária. Terceiro, ao contratar o frete ferroviário, já inclui o porto, que muitas vezes também enfrenta problemas logísticos e ineficiências. No sistema rodoviário, o caminhoneiro vai até o ponto, resolve o problema rapidamente. A facilidade que o sistema rodoviário oferece ao embarcador é muito grande. E quanto aos outros modais? A cabotagem é igual. Para fazer cabotagem, é preciso ir de uma unidade industrial até um porto, usando rodovia ou ferrovia. Depois, do porto, há outra “pernada”. Na prática, é uma “multilogística”. Por exemplo, quando o arroz sai do Rio Grande do Sul para o Maranhão, a “pernada” na rodovia é mais simples. Por isso, a rodovia é mais fácil.
Sabemos que existem os interesses dos associados e das empresas de maneira geral, e a associação atua como intermediária nas questões regulatórias com o poder público. Como é realizar esse trabalho de mediação e negociação atualmente no Brasil?
Essa é uma excelente pergunta por uma razão simples. A ANUT não trata das relações comerciais entre a empresa e o concessionário, como tarifas ou custos. Isso é uma relação privada entre quem compra e quem vende o serviço. No entanto, a regulação dessa relação, feita pela ANTT, sim, interfere. E por que há a regulação? Porque têm algumas características na ferrovia e na rodovia que levam à condição de monopólio. Se fosse um mercado aberto, não haveria necessidade de regulação; o próprio mercado se regulava. A ANUT se insere no momento em que inúmeras empresas têm o mesmo problema para resolver junto àquele setor. Não é uma empresa com problema com a concessionária, são muitas empresas com o mesmo problema. Então, é um problema setorial que envolve um ato regulatório do governo e da agência reguladora. Essa relação não pode ser tendenciosa, deve ser equilibrada, harmonizando os interesses de ambos os lados. A ANUT garante que a regulação da ANTT não favoreça nem o concessionário, nem o usuário. Por exemplo, quando a ANTT estabelece um teto tarifário, ele não pode ser nem tão alto, que permita grandes variações de valor, nem tão baixo, que inviabilize a operação do concessionário. Além disso, não podemos permitir que o frete rodoviário, que hoje tem um valor mínimo, seja tão baixo que inviabilize a cadeia dos caminhoneiros, senão eles entram em falência, prejudicando todo o setor. Essa relação é institucional e envolve a agência reguladora, o Estado, o Ministério dos Transportes, da Fazenda, a Casa Civil, os órgãos de fiscalização, o Judiciário e o Tribunal de Contas da União. Portanto, a atuação da ANUT é garantir que as regulações não se tornem um obstáculo nem para o usuário, nem para o concessionário. Por isso, criamos um ambiente de credibilidade. A ANUT hoje é chamada para debater qualquer tema sobre atos regulatórios, como projetos de lei no Congresso, análises do Tribunal de Contas da União, prorrogação ou repactuação de contratos, sistemas de mediação, entre outros. E isso foi construído ao longo do tempo pela nossa credibilidade. Não criticamos, apontamos os problemas e buscamos soluções conjuntas.
Considerando os 20 anos de atuação da ANUT, quais você destacaria como as principais agendas da associação em 2024, levando em conta todo o contexto que você acabou de descrever?
Recentemente, tivemos uma grande vitória, que foi a regulamentação das operações acessórias no sistema ferroviário. O sistema ferroviário cobra dois valores: a tarifa de transporte, que é o frete entre a origem e o destino, e as operações acessórias, que são cobranças pelo trabalho da concessionária para colocar o trem na linha, como manobra, carga, descarregamento e limpeza dos vagões. Esse tema era considerado “terra de ninguém”, sem um conceito claro sobre o que era ou não uma operação acessória. Lutamos por quase oito anos junto à ANTT para estabelecer esse conceito. Em dezembro de 2022, a resolução foi publicada, trazendo clareza para o mercado sobre essa questão. Foi um trabalho reconhecido como muito importante. Outra atuação relevante da ANUT foi durante a greve dos caminhoneiros em 2018. No auge da greve, com desabastecimento e uma grave, o governo criou um gabinete de crise. A ANUT teve uma atuação propositiva importante, preparando documentos que definiram conceitos e estratégias, que se tornaram referência. Durante uma reunião na CNI, com mais de 40 entidades, o documento que elaboramos se tornou uma referência e a ANUT passou a liderar o movimento, contribuindo para o fim da greve. Uma das medidas que resultaram dessa ação foi a Lei do Preço Mínimo do Frete (Lei n.º 13.703), que ajudou a acalmar a situação. Além disso, trabalhamos na criação de pontos de parada e descanso para caminhoneiros, reconhecendo a dura realidade de trabalho deles, e apoiamos propostas no Congresso para incluir a obrigatoriedade desses pontos nas concessões de rodovias. Também participamos das discussões no Supremo Tribunal Federal, contribuindo para melhorar a lei do preço mínimo. Nossa atuação foi muito elogiada e de liderança, que não era o nosso papel. Quem estava liderando era a própria CNI, mas viu que desempenhamos um papel institucional tão importante que convidou a ANUT para ser a representante no Supremo.
Olhando para o futuro: como você, estando na posição que está na ANUT, enxerga os próximos dez anos da logística brasileira?
Vou olhar para os próximos dez anos, um período que não é tão distante a ponto de não enxergarmos, mas também não tão perto para dizer que é amanhã. Acho que dez anos é o tempo adequado. Precisamos ter uma luta atual. A primeira luta é sobre recursos, dinheiro público. O setor ferroviário tem dinheiro de outorga e de recuperação de vias. Por exemplo, as concessionárias pagam um milhão e meio de reais por cada quilômetro devolvido. Se devolverem dois mil quilômetros, pagam três bilhões e seiscentos milhões de reais. Existem devoluções de trechos gerando uma massa de bilhões de reais que, infelizmente, vai para o Tesouro Nacional e não retorna para o setor. Essa luta é crucial, que esse dinheiro, que o Ministério dos Transportes calcula ser entre R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões, permaneça no setor ferroviário. A segunda luta é para que esse dinheiro seja aplicado com prioridade técnica, não política. O desenho da aplicação deve ser feito por pessoas que entendam tecnicamente, buscando maior integração, capacidade de transporte e eficiência logística. O terceiro ponto é que os modelos de aplicação desse dinheiro sejam por meio de parcerias público-privadas. Sabemos que, ao investir 30% com recursos públicos e 70% do setor privado, é possível viabilizar investimentos maiores. Com 30 bilhões de reais de dinheiro público, podemos gerar R$ 100 bilhões em investimentos. O quarto ponto é a regulamentação da integração e interoperabilidade das vias. Não podemos investir em uma via que fique isolada e sem conexão com outras para chegar a um porto. Se uma malha central chega ao Porto de Santos, por exemplo, e a malha diz que não pode passar a carga porque está lotada, o investimento não faz sentido. A questão da interoperabilidade é uma das mais importantes. Se o sistema continuar com trechos isolados, em que cada malha opera de forma independente, não avançaremos. Isso é uma decisão política e regulatória fundamental, e já dissemos à ANTT que vamos lutar para que isso avance. Acredito que, com esses quatro pontos, podemos dar um salto de qualidade no sistema ferroviário brasileiro em 10 anos. Não será algo rápido, pois há muitos detalhes a serem definidos, como alterar a lei de PPP, que o Executivo já está propondo mudar. A Lei de PPP (Lei n.º 11.079 de Parceria Público-Privada), de 2004, precisa ser ajustada, pois alguns de seus comandos impedem a aplicação de recursos públicos, como mencionei. Será necessário construir um alicerce institucional para viabilizar o investimento em dez anos, mas é possível. Não é impossível, só depende da vontade política, porque temos o conhecimento necessário para fazer. Em dez anos, podemos alcançar um nível de eficiência e produtividade ferroviária que trará grande contribuição, juntamente com o setor rodoviário.
Publicado em 04/12/2024 — por Christian Presa / MundoLogística